terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Vidas em cárcere: "Quem controla a cadeia são os presos"

Após cinco anos e meio como juiz-corregedor do Conjunto Penal de Feira de Santana, Waldir Viana agora responde pela Vara do Júri de Camaçari, onde foi empossado no dia 28 de novembro. Em entrevista à reportagem de A TARDE, o magistrado fala sobre a decisão que converteu a prisão em regime semiaberto para regime domiciliar de 320 presos da unidade de Feira de Santana, em setembro último, e do crescimento das facções criminosas no estado, entre outras coisas.

Eu gostaria que o senhor explicasse como se deu o processo da conversão do regime semiaberto em regime domiciliar de internos do Conjunto Penal de Feira de Santana.

A liberação dos presos decorreu de um processo longo e frustrado de quase dois anos de tentativa de contornar esse problema de uma maneira menos impactante para a sociedade. O conjunto arquitetônico do Conjunto Penal de Feira de Santana é projetado para o regime fechado. O prédio não foi projetado para o regime semiaberto. Daí já é o primeiro problema, se colocar o Conjunto Penal de Feira de Santana para executar tanto o regime fechado quanto o semiaberto. Impossível. Ele não atende às exposições da Lei de Execução Penal para um regime semiaberto. Considero até bom para o regime fechado, o isolamento é celular, são celas, enquanto no regime semiaberto você precisa de alojamentos coletivos. Além disso, o regime semiaberto tem que ter espaço adequado para oferecer estudo para todos os presos que queiram estudar. Lá não tem. O módulo de estudo é muito pequeno, é pífia a quantidade de vagas, não atende à demanda. Oferta de trabalho, que é outro requisito desse regime, não existe. A oferta de trabalho é pífia, é ridícula. Ou seja, eu posso lhe afirmar: no Conjunto Penal de Feira de Santana não existe regime semiaberto nos termos da Lei de Execução Penal. O regime semiaberto lá é uma falácia, é uma mentira. É uma unidade para regime fechado. Além disso, e o que é muito pior, sequer estavam fazendo a separação dos presos do regime semiaberto dos presos do regime fechado. Os presos estavam todos misturados nos 13 pavilhões, presos provisórios e definitivos, que também é absurdo. Os presos provisórios são aqueles que ainda não foram julgados, não podem ficar misturados com os que já foram condenados. Ou seja, um total acinte, um total desrespeito à Lei de Execuções Penais. E isso não é só um acinte ao direito dos presos. Eu vou muito além. Isso causa um impacto muito negativo para a Segurança Pública. À medida que você coloca presos provisórios com aqueles já condenados do regime fechado, mais rigoroso, você está colocando esses presos novos no sistema em contato direto com os presos perigosos que hoje integram as facções criminosas, que dominam todo o sistema penitenciário baiano. Nós temos quatro facções grandes que agem no estado, que dominam o sistema prisional baiano, que mandam dentro do espaço das unidades, mandam da muralha para dentro, ditam suas próprias regras, que são Bonde do Maluco (BDM), Caveira, Katiara e Comando da Paz (CP). Você coloca os presos que entraram no sistema agora, que nem estão versados ainda no mundo do crime, direto com os líderes das facções criminosas. O que você está fazendo com isso? Você está oferecendo de mão beijada, o Estado está oferecendo de mão beijada mão de obra, recrutamento fácil para as facções. E é por isso que as facções não param de crescer no estado da Bahia. O próprio Estado com a sua política penitenciária errada, desorientada, está fomentando o crescimento das organizações criminosas. Dentro do sistema é o mundo-cão, é um sistema que se rege por normas próprias, peculiares do mundo do crime. Quando você coloca um preso desses lá dentro, inexperiente, novo no sistema, por uma questão de sobrevivência, para não ser extorquido, não ser seviciado, não ser abusado, não ser vilipendiado de todas as formas, ele é obrigado a se filiar a uma dessas facções para ter a proteção dela e conseguir sobreviver dentro do sistema. Uma vez que ele entra para essa facção, que ele jura o estatuto, cada facção tem um estatuto, não tem mais volta. Ele está vinculado a ela para o resto da vida. Ele está vinculado ao mundo do crime para o resto da vida. Porque ele vai receber a proteção, ele vai receber o espaço, a família vai ter ajuda fora da unidade prisional. Só que ele paga um preço por isso, o preço é dever a vida dele à facção. Quando ele volta para a rua, ele já sai com obrigações determinadas pelas lideranças da facção, de praticar assalto, de praticar homicídio. Enfim, é uma bola de neve. Então, essa nossa decisão de colocar o pessoal do regime semiaberto em prisão domiciliar, tirá-los de dentro do sistema, na verdade, não é só para garantir o direito do preso a cumprir pena no regime semiaberto, que é o regime mais brando que ele foi condenado. Acima disso, o principal objetivo da decisão é o de tirar essas pessoas do contato das facções criminosas, de evitar que elas consigam recrutar novos soldados e tentar interromper esse processo de crescimento do crime organizado dentro das unidades prisionais.

Ao que o senhor atribui o crescimento dessas facções criminosas dentro do sistema penitenciário?

Principalmente, ao meu ver, à falta de separação dos presos como determina a legislação penal, separados pelo grau de periculosidade. Separar os reincidentes daqueles primários, separar os que já têm envolvimento com facção criminosa daqueles que não têm. Fazer a separação correta dos presos e não colocar todo mundo misturado em um 'bolo' só. E, além disso, um fator que agrava muito: o quadro de agentes penitenciários do estado da Bahia é um quadro defasado, precário e envelhecido. Há muito tempo esse quadro está engessado. Para se ter uma ideia, no Conjunto Penal de Feira de Santana, para dois mil presos tecnicamente nós teríamos que ter 80 agentes penitenciários por plantão. Nós só temos 20. Nós trabalhamos com ¼ do efetivo de agentes penitenciários. Ou seja, não tem como o Estado exercer o controle sobre a população carcerária com esse efetivo defasado. Quem controla a cadeia são os próprios presos. Quem controla os pavilhões são as facções, as lideranças das facções criminosas. Por que? Porque não tem agente penitenciário para impor autoridade pública, pra impor autoridade estatal dentro do sistema.

O senhor pode listar os motivos pelos quais as facções têm uma atuação significativa dentro das unidades e conseguem também gerir o crime fora delas?

Sim. Isso é bem complexo. É muito mais fácil hoje, muito mais seguro, para as lideranças dessas facções estarem presas, estarem dentro do sistema, do que na rua. Os presídios acabaram se tornando uma espécie de bunker para esse pessoal. Porque dentro de um pavilhão daqueles com duzentos e poucos presos eles conseguem colocar uma quantidade enorme de soldados da facção em volta deles protegendo. Então você tem ali dois, três, quatro sintonias finais de uma facção dentro de uma cela daquela com acesso à internet, a telefone celular, tocando a organização criminosa deles. E, em volta deles, você tem dentro do próprio pavilhão 25, 30, 40 soldados da facção protegendo eles. Além do próprio aparato estatal da segurança perimetral da unidade. Então é muito mais cômodo para eles estarem dentro da unidade prisional gerindo os negócios ilícitos, do que na rua. Na rua, eles estariam suscetíveis à própria guerra que eles travam pelo controle. Uma guerra que, no Brasil, mata em torno de 64 mil pessoas por ano. Dentro do presídio, eles estão protegidos. É muito mais cômodo para eles

Podemos afirmar que a condição de operar com um número de agentes penitenciários abaixo do recomendado é uma falta de boa vontade do Estado?

Eu não sei se é uma falta de boa vontade. Mas a gente percebe que existe uma resistência muito grande da Secretaria de Administração Penitenciária em realizar concurso para agente penitenciário. Se chega ao absurdo, aqui na Bahia, de contratar agente penitenciário por Reda (Regime Especial de Direito Administrativo). Isso é inconstitucional. Isso é irregular. Agente penitenciário é carreira típica de Estado. Ele exerce poder de polícia administrativa. Ele tem poder de polícia dentro do sistema prisional. Então é carreira típica, privativa de servidor público, titular de cargo, concursado, cargo permanente organizado em carreira. Aqui na Bahia, se chega a contratar agente penitenciário por Reda para evitar o concurso público. O que está inclusive na contramão de todo o País. Nós temos uma PEC (proposta de emenda constitucional) tramitando no Congresso Nacional, está em fase final. Essa PEC já foi aprovada em primeiro turno em ambas as casas, deve ser agora aprovada em segundo turno e virar emenda constitucional no começo do novo governo. É uma PEC que cria a Polícia Penitenciária. Os agentes penitenciários atuais do Brasil inteiro passam a ser policiais penitenciários. Ou seja, enquanto nós estamos emendando a Constituição para transformar o cargo de agente penitenciário em policial, a Bahia está querendo contratar agente penitenciário por Reda, contratação precária, selecionado por currículo sabe-se lá como.

É uma condição legal os agentes penitenciários fazerem a escolta de presos?

Sim. Se não em todos, em quase todos os estados da federação, hoje em dia, são os agentes penitenciários que fazem a escolta de presos. Não é a Polícia Militar. É atribuição dos agentes. Só que, nesses estados, os agentes estão treinados, capacitados e armados para cumprir com essa missão. Se você chegar ao estado de São Paulo, todo o trabalho de escolta é feito por agentes penitenciários, mas agentes penitenciários treinados adequadamente, com armamento sofisticado, com carabina 556, com carabina .40, com submetralhadora, enfim com todo o equipamento de segurança. E mais com procedimentos de segurança que lhes foram passados. Eles estão treinados pra fazer. Aqui na Bahia, eu tenho a impressão que, se não for o único, é um dos únicos estados onde a Polícia Militar ainda, em desvio de função, faz esse papel.

Então a atuação do Batalhão de Guardas é caracterizada como desvio de função?

O Batalhão de Guardas deveria exercer a missão institucional de fazer a segurança externa das muralhas. Mas a missão de escoltar, de fazer a escolta de presos, hoje, eu posso dizer que seria um desvio de função. Sobretudo porque, como eu disse, está sendo criada por emenda constitucional a Polícia Penitenciária para essa finalidade. Não é uma finalidade da Polícia Militar. Há muito tempo que, nas outras unidades federativas, a Polícia Militar deixou de fazer. Fazia. Mas deixou. Na Bahia, continua fazendo.

À época da conversão do regime semiaberto em domiciliar, o diretor da unidade, capitão Allan Araújo, disse que a medida punia a sociedade uma vez que o Estado não tem condições de monitorar esses presos.

Em primeiro lugar, eu acho que ela não pune a sociedade. Ela evita o recrudescimento do crime organizado. Ela evita o crescimento das facções criminosas, das quatro facções criminosas que repartem as unidades prisionais. Agora, principalmente, se não existe esse controle correto das prisões domiciliares, se não é possível fiscalizar se eles estão em casa como foi determinado, é culpa da própria administração penitenciária, que até hoje não conseguiu concluir uma licitação para aquisição de tornozeleiras eletrônicas. A lei do monitoramento eletrônico é de 2010. Há oito anos em vigor, há oito anos que a Bahia não tem tornozeleira, monitoramento eletrônico. Tem 300 só. Uma quantidade insignificante e só para Salvador e região metropolitana. O interior do estado não tem monitoramento eletrônico. Há mais de dois anos, o secretário de Administração Penitenciária, Nestor Duarte, toda vez que ele é interpelado, ele diz para a imprensa que existe uma licitação em andamento para adquirir em torno de 1,7 mil tornozeleiras, se eu não me engano, e que, em 60 dias, ele vai concluir. Tem mais de dois anos que ele diz que vai concluir essa licitação em 60 dias e nunca concluiu. Então, se não tem a tornozeleira eletrônica para monitorar esses presos, não tem por culpa, por desídia, da própria Secretaria de Administração Penitenciária, que não adquiriu essas tornozeleiras. A Bahia hoje é o único estado que não tem monitoramento eletrônico. Até estados mais pobres, como Alagoas e Acre, têm o serviço de monitoramento eletrônico. A Bahia não tem. E isso é culpa de quem? Ineficiência. Ineficiência do gestor, do senhor gestor da Seap

Euzeni Daltro | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE


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